José Eliézer Mikosz

ENOC – Da Arte Pré-Histórica até a Arte Visionária

Introdução

Este trabalho visa apresentar o conceito de Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC) e a sua relação com o fazer artístico, originando assim o que é denominado por Arte Visionária. Nestas representações pictográficas é possível encontrarmos o que Carl Jung chama de inconsciente coletivo. Estabeleceremos então uma relação entre os arquétipos que para Jung são  imagens apriorísticas inscrustadas no insconciente coletivo e sua presença nas pinturas pré-históricas.

Estado não ordinário de consciência ou ENOC é um conceito utilizado em diversos estudos, amplamente utilizado nas pesquisas que envolvem antropologia, psicologia, neurociência, arqueologia e a passos curtos vem sendo inserido nos debates que envolvem a história da arte. Charles Tart é um psicólogo e parapsicólogo norte-americano internacionalmente conhecido pelo seu trabalho psicológico na natureza da consciência, foi responsável pelo termo ASC- Altered States of Consciousness e pela legitimação dos ‘ASC’ como um estado legítimo e não apenas uma simples alteração, distorção, uma deformação dos outros estados tidos como normais.  Exemplo disso são as visões de padrões geométricos como espirais, vórtices, zigue-zagues, linhas onduladas, pontos luminosos, etc., muitos deles presentes na arte rupestre e indígena, supondo que essas visões sejam características inatas do ser humano. José Mikosz nos diz em sua Tese defendida em 2009:

Tanto os estados ordinários como os não ordinários de consciência têm seus prós e contras. A consciência ordinária é pródiga em grandiosas realizações em todas as áreas técnicas, filosóficas, científicas e artísticas, porém, nem por isso livre de erros ou de mau uso. A consciência não ordinária, por sua vez, pode trazer clareza e discernimento, aumento da criatividade ou apenas ilusões e enganos. Ela pode inspirar cientistas e artistas.” (MIKOSZ, p. 22)

O que são ENOC’s:

Uma questão a ser esclarecida, é que vulgarmente associamos os Enoc’s exclusivamente ao uso de substância psicoativa como o LSD, cogumelos, ayauaska. No entanto, este estágio pode decorrer de várias causas, como práticas místico-religiosas à exemplo da meditação, jejum, celibato, tantra, rezas, mantras ou cânticos muito repetitivos; músicas específicas, batidas rítmicas de tambores, entre outras. Tudo isso pode produzir estados de expansão da mente. A dor também, com autoflagelo. Stanislav Grof, psiquiatra tcheco, desenvolveu nos EUA pesquisas sobre os estados alterados de consciência, e no trecho do vídeo a seguir ele explica de forma resumida porém muito clara o que seriam os Enoc’s:

https://www.youtube.com/watch?v=ASP27cig5xg 

 


 

ENOC’s e Pré-História

Para além das aplicações que o conceito de ENOC pode ter, nos deteremos na sua relação como condição do processo de produção artística, para  a criação de obras de arte ditas como “Arte Visionária”. Essa forma de expressão não é recente, existe há milênios, como bem demonstra o pesquisador David Lewis-Williams em “Inside the Neolithic Mind”. Esse estudioso consigna obras de xamãs desde a remota arte rupestre.  Em 2009, a BBC de Londres realizou um interessante documentário a esse respeito em uma série de cinco capítulos, chamado “Como a Arte Fez o Mundo”, sendo que o segundo capítulo, “O Dia em que as Imagens Nasceram”, discute este fenômeno, a série pode ser encontrada na íntegra do YouTube, o capítulo aqui citado pode ser visualizado a seguir:

https://www.youtube.com/watch?v=e_qRpLa6e0A

 


 

ENOC’s, inconsciente coletivo e arquétipos

Analisando a Arte Visionária, é possível encontrar algumas formas geométricas e padrões que sempre estão presentes. Essas formas podem se repetir em culturas nunca antes relacionadas, apresentando assim um padrão pŕe-existente, para além do histórico e social. A questão a ser tratada é: Como uma tribo indígena do interior do Acre no século XXI pode ter sua produção artística relacionada  com pinturas pré históricas européias de mais de vinte mil anos atrás?

Para responder essa questão, teremos que abordar mais dois conceitos que foram amplamente utilizados por Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suiço que criou a psicologia analítica. Esses dois conceitos são o de inconsciente coletivo e os arquétipos.

Segundo Jung, o inconsciente coletivo não derivaria da existência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição do sujeito. Há uma clara distinção se compararmos ao inconsciente freudiano, pois, o inconsciente coletivo se dá devido ao fato de que “os conteúdos do inconsciente coletivo nunca estiveram na consciência e portanto não foram adquiridos individualmente, mas devem sua existência apenas à hereditariedade. […] o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos”. (JUNG, 2000, p. 53)

O conceito de arquétipo não é algo exclusivamente junguiano, ele mesmo salienta que outros autores da psicologia já tratam da representação coletiva como “motivos”, “categorias da imaginação”, “pensamentos elementares”. É indispensável o conceito de arquétipo para compreender o inconsciente coletivo. Os arquétipos seriam formas na psique, presentes em todo tempo e em todo lugar. Segundo as palavras do próprio Jung, sua tese é a seguinte:

à diferença da natureza pessoal da psique consciente, existe um segundo sistema psíquico, de caracter coletivo, não-pessoal, ao lado do nosso consciente, que por sua vez é de natureza inteiramente pessoal […] .O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tomar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência” (JUNG, 2000, 54).

 

esquepsi

 

 

Aldous Huxley foi um escritor inglês mais conhecido pelos seus romances, como ‘Admirável Mundo Novo’ e diversos ensaios, foi um entusiasta do uso responsável do LSD como catalisador dos processos mentais do indivíduo, em busca do ápice da condição humana e do maior desenvolvimento das suas potencialidades. Para ele, o cérebro humano filtra a realidade de modo a não permitir a passagem de todas as impressões que nos afetam, e caso não existisse essa espécie de filtro, seria impossível absorver a quantidade de informações que estamos expostos diariamente. Como resultado de suas experiências, ele concluiu que durante os Enoc’s os objetos do nosso cotidiano perdem a sua funcionalidade, passando a existir “por si mesmos”. O espaço e as dimensões tornam-se irrelevantes, parecendo que a percepção se alarga de uma forma espantosa e humilhante já que o ser humano se apercebe da sua incapacidade de compreensão de todos os estímulos que o cercam.

Então os Enoc’s possibilitam a diminuição de tais “filtros”, a arte visionária apresenta os arquétipos por meio de suas formas recorrentes, já que o inconsciente coletivo pode ser “acessado” em tais momentos de relaxamento dos filtros constituintes do sujeito.

 


 

Arte Paleolítica e padrões

Nos deteremos agora especificamente na arte paleolítica, onde é possível encontrar determinados padrões e formas geométricas. Infelizmente não há como ter certeza das reais motivações das criações do período. Com a introdução aqui apresentada podemos compreender como é que se chegou a tal conclusão, podemos também aproximar a organização dos homens pré-históricos com as tribos isoladas estudadas no século XX.  Nos tempos antigos, essas expressões artísticas eram geralmente produzidas por xamãs que agiam sobre a influência de plantas alucinógenas. Algumas pesquisas visam compreender a relação da arte paleolítica e os alucinógenos, como é o caso de uma nova pesquisa proposta conjuntamente pelos matemáticos Takashi Ikegami da Universidade de Tóquio e Tom Froese e Alexander Woodward da Universidade Nacional Autônoma do México. Propõe-se que os padrões geométricos presentes nas pinturas rupestres (com uma idade de cerca de 40.000 anos) mostram padrões similares, apesar da sua localização geográfica, o que sugere um substrato comum na fonte, os cientistas colocariam a relação do xamã / artista com os efeitos das substâncias alucinógenas. A imagem a seguir ilustra bem a presença de tais símbolos na arte pré-histórica em diversas regiões:

 

Símbolos da humanidade na Idade da Pedra. Genevieve von Petzinger.

Símbolos da humanidade na Idade da Pedra. Genevieve von Petzinger.

 


 

Arte Visionária

A arte visionária pode estabelecer relações com vários outros artistas de diversas épocas. Na contemporaneidade, especificamente, a arte visionária vem ganhando adesão e já há artistas que ostentam com orgulho o título de artistas visionários.  Alex Grey é um artista americano especialista em arte visionária. Seus trabalhos de arte se estendem a uma variedade de formas, incluindo performance, Process Art, arte de instalações, esculturas, Visionary Art e pintura.

Alex Grey tem uma série de trabalhos temáticos entitulada “Progress of the soul“, onde podemos ver a diferença diante da arte rupestre, sempre levando em consideração, também, a incomparabilidade entre as técnicas e materiais que a nossa época pode oferecer. Devemos nos atentar ao que guia a produção, que nesse caso específico são os Enoc’s.

 

Vision Tree

Vision Tree – Alex Grey

Cannabia

Cannabia – Alex Grey

 


 

Conclusão

Podemos concluir então, que a arte visionária é um campo aberto passível de exploração e que podemos estabelecer uma constante em relação a arte produzida há tantos milênios atrás. A História da Arte deve, também, estabelecer conexões com os ramos da psicologia, arqueologia, neurociências, entre outros, para nos aproximarmos do que realmente somos constituídos. A arte visionária vai muito além de uma contemplação da obra, ela nos oferece um vislumbre daquilo que realmente somos, possibilitando a reconstituição de um elo entre nós e os homens primitivos. Tanto tempo se passou e os arquétipos que nos constituem são os mesmo. Mais do que um exercício de compreensão da arte, a arte visionária pode servir como um exercício de contemplação da real humanidade.

Ocean Life

Ocean of Life – Alex Grey

 


 

Referências bibliográficas:

HUXLEY, A.  As Portas da Percepção. São Paulo: Editora Globo, 2002.

JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Insconsciente Coletivo.  Petrópolis: Vozes, 2000.

JAFFÉ, A. “O Simbolismo nas Artes Plásticas”. In: O Homem e seus Símbolos. JUNG, C. G. (Org.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.  (p. 225-267).

MIKOSZ, J. L. A Arte Visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Espirais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). Universidade Federal de Santa Catarina– Florianópolis, 2009. Tese (doutorado).

Sites:

<http://www.artevisionaria.com.br&gt;

<http://alexguerraterra.blogspot.com.br/2013/07/simbolos-del-arte-paleolitico-codigo.html&gt;

<http://rupestreweb.tripod.com/alucino.html&gt;

paintings/soul/>

 


 

Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Belas Artes

Realizadores do Trabalho: Aldones Nino, Daniela Soares, Bernardo da Silveira e Agatha Freires.

3 pensamentos sobre “ENOC – Da Arte Pré-Histórica até a Arte Visionária

  1. O estudo dos processos que envolvem e exercitam a psique humana, para mim, é de suma importância para o entendimento das relações existentes no meio social e cultural dos nossos ancestrais. A criação de paralelos como esse só reforçam a ideia de que muito nunca mudou, apenas se reconfigurou de acordo com as exigências temporais e espaciais de cada período histórico. É interessante também como a ascensão à um estágio mental diferenciado possibilita visões alternativas de representação do homem e seu ambiente, permitindo um leque infinito de imagens, ajudando a desconstruir noções de forma, cor, profundidade e até moralidade.

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  2. Trabalho muito esclarecedor sobre a desmistificação de outros estados de consciência, pessoal. As várias camadas de percepção extra-sensorial são, por muitas vezes, qualificadas como vias não-ortodoxas de conhecimento sobre a psique humana e a natureza da sociedade em geral em partes por estranhamento cultural. Os rituais e processos de aproximação à outros estados mentais poderiam nos auxiliar na compreensão da legitimidade das dimensões espirituais e como suporte ao declínio claro do estado destrutivo em que o organismo ocidental se encontra.

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