A MULHER, DIONÍSIO E O CARNAVAL

Representação de Dionísio

 Dionísio e o seu culto

Mundialmente difundido como deus do Vinho e das Orgias, Dionísio (Baco para os romanos) figura-se no imaginário popular mesmo nos dias atuais. Na mitologia o deus é filho de Zeus e da princesa Sémele que é filha do Rei Cadmo e de Harmonia, e Harmonia, por sua vez, filha de Afrodite e Ares. Na cultura ocidental, o mito Dionisíaco instaurasse como uma forte influência para as artes, e é comummente associado a diversas manifestações culturais. Dionísio é considerado também o deus do teatro e dos Ditirambos.

Os antigos gregos cultuavam a divindade em busca de bons resultados com a fertilização da terra. Como forma de homenagear o deus, eles realizavam três grandes festivais: as Dionísias Rurais, que aconteciam no meio do inverno; o Festival de Lenaea, que ocorria em janeiro, e visavam comemorar os casamentos; e o principal festival, a Grande Dionísia, ou Dionísia Urbana, evento para qual as principais tragédias e comédias gregas que conhecemos foram escritas.

As descrições a cerca do culto a Dionísio apresentam variadas versões, porém a mais propagada relata que nos rituais as pessoas utilizavam agentes tóxicos, principalmente o vinho, que agiam intensamente erradicando as inibições. Entretanto a figura feminina é prioritariamente destacada como protagonista nos cultos. Podemos ler diversos textos na web, e até mesmo alguns de cunho científico, que apontam a imagem de mulheres ensandecidas como elemento frequente nos cultos e rituais dirigidos ao deus.

As Bacantes, encenada pelo grupo Oficina

As Bacantes, encenada pelo grupo Oficina

Alguns nomes eram dados as praticantes do rito Dionisíaco, os mais conhecidos são Ménades, Bacantes, Tíades ou Bassáridas. Além das mulheres, a maior parte dos praticantes eram estrangeiros, subversores e escravos. Apesar da carência de fontes formais, ou de reconhecimento científico sobre o verdadeiro caráter dos ritos, tendemos a acreditar que os temas em destaque nas cerimônias eram os da morte e do renascimento.

No Dicionário Mítico – Etimológico de Junito de Souza Brandão podemos ver uma descrição das Ménades, ou Bacantes, e a sua relação com a imagem construída sobre os cultos:

as bacantes

Representação das bacantes

“No mito, as primeiras Ménades eram ninfas que cuidaram do recém- nascido Dionísio. Possuídas pelo êxtase e entusiasmo provocados pelo deus, num estado de mania e orgia místicas, percorriam alucinadas montanhas e campinas. Para elas as águas das fontes em que bebiam eram leite e mel.” (BRANDÃO, 1997, p. 106, vol. I)

Num outro relato, desta vez presente no livro “As Bacantes” de Eurípides, as seguidoras de Baco aparecem em um ataque enfurecido, dilacerando homens, sob o efeito do vinho:

Tudo era um confuso clamor,

ele, gemendo o que o alento lhe consentia,

elas, ululando. Uma levava um braço,

outra um pé ainda calçado. Desguarnecidos estavam

os flancos pelos dilaceramentos. Com as ensanguentadas

mãos, em jeito de bola, as carnes de Penteu arremessavam.

O corpo mutilado jazia aqui e ali, partes em agrestes

rochedos, parte na folhagem do bosque frondoso.

(EURÍPEDES, 5to episódio)

Estátua retratando um soldado matando uma mulher

Estátua retratando um soldado matando uma mulher

A mulher na Grécia Antiga

Refletindo o contexto grego em que o mito foi difundido, e buscando correlacioná-lo com o contexto atual, tentaremos pensar o que legitimaria ideologicamente a forma com que a mulher é colocada no rito. Se considerarmos a força da estrutura patriarcal entre os gregos, e a influencia disso no desenvolvimento das subjetividades catalisadoras para a difusão do mito, talvez achemos a primeira pista para a análise dos fatores que propiciaram essa associação.

Na Grécia Antiga, os direitos a expressão e a participação política eram estritamente designados aos homens. O que já de antemão coloca a mulher como ser submisso ao provimento das decisões políticas e consequentemente refém da centralização do poder de imposição subjetiva da figura masculina.

Atentando-nos aos arquétipos dos deuses gregos, o de Dionísio é colocado em oposição ao de Apolo. O último concebido como deus da medida, e o primeiro o da desmedida. Nesse sentido, podemos traçar uma ligação direta do arquétipo dionisíaco com a descrição dos cultos ligados ao mesmo. A partir disso destacamos aqui a tendenciosa e proposital imposição da figura feminina ligada aos referidos cultos, pois se o homem é para a cultura grega o gênero central e privilegiado, tudo nos faz a crer que a mulher representaria na imagética grega o ser propenso à desmedida, assim como os escravos, os estrangeiros e toda sorte de subversores.

Atriz global em desfile da União da Ilha

Atriz global em desfile da União da Ilha

A mulher no carnaval

Mas o que essa constatação, ainda que especulativa, traz de contribuição para pensarmos nossa contemporaneidade e suas contradições? A reposta pode estar nos elementos incorporados em uma das mais conhecidas manifestações culturais do Brasil: O Carnaval.

O Carnaval, que muito tem de herança das festividades e cultos oferecidos a Dionísio, apresenta variações formais e práticas em cada região do país. Porém, gostaríamos de refletir sobre a sua versão mais difundida comercialmente, e de maior alcance no país através dos conglomerados midiáticos que dominam os veículos de

Sexo retratado em cerâmica antiga

Sexo retratado em cerâmica antiga

comunicação nacional.

No Rio de Janeiro, cidade detentora dos principais holofotes no período do carnaval, a trajetória dos grupos carnavalescos mais conhecidos mistura atos de rebeldia popular, como a apropriação do espaço público através de uma festa popular, com a forte industrialização e normatização dos desfiles. A festa da desordem, que usava a figura do momo como a representação da inversão normativa, aos poucos foi se transformando no carro-chefe da propagação do estereótipo das mulheres brasileiras nos países estrangeiros.

A cada ano a imagem se repete, o show carnavalesco produzido para vender nos chamados sambódromos, surge exuberante e luxuoso. A TV de cada brasileiro fica recheada de plumas, cores, e histórias contadas pelas escolas e agremiações que cruzam a avenida. E o tempero mais utilizado na miscelânea estética, adivinhem… é o corpo feminino.

 Notícia em site estrangeiro e a publicidade relacionada

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 A carne mais barata

A quantidade de nádegas e seios femininos exibidos nos monumentais desfiles carnavalescos toma a atenção do público que se desvanece em olhares bestificados e devoradores. A comercialização do corpo da mulher alcança seu apogeu e ele vem acompanhado de pitadas fartas de racismo e reprodução de padrões heteronormativos. Mas há na festa também uma historiografia pouco comentada, o carnaval também é, ou foi, em alguns contextos, uma festa da inversão de valores.

A mesma desmedida, que pode contestar as ordens vigentes, aos poucos foi minada e reconfigurada para vender e reforçar os

Passistas da Vila Isabel

Passistas da Vila Isabel

valores do patriarcado. A objetificação do feminino, como algo vendável e sujeito à propriedade de um homem, toma espaço hegemônico nas emissoras de TV. Assim como na Grécia vemos homens coibindo a apropriação das mulheres enquanto ser social e político. E assim como na Grécia também, o que um dia pode ter se originado como ritual de transgressão, está sendo roubado e convertido em instrumento ideológico para reprodução de valores opressores.

O contexto temporal pode estar distante, mas as similaridades coexistem e nos afetam. Mesmo passados alguns milênios, seguimos coniventes em agredir os corpos femininos, zombar de suas tentativas de resistência, eliminar seu direito criador e deliberativo, e no passar do ano matar, só no Brasil, cerca de 15 mulheres por dia. Considerando as questões problematizadas no presente texto, apontamos a cruel semelhança nas associações que a figura da mulher sofreu, tanto no contexto grego, quanto no brasileiro. Mais do que mito, as características atribuídas ao culto dionisíaco pode mostrar o quão antigo é o nosso machismo, e o quão arcaico é a opressão para com a mulher, que de tão forte e enraizada nas duas culturas, está retratada em ritos e eventos tão próximos e tão distantes.

 Blocos de rua no carnaval

Blocos de rua no carnaval

Trabalho feito por Claudio Marques, para a disciplina de História das Artes Visuais I, do curso de História da Arte, da Escola de Belas Artes da UFRJ.

Bibliografia

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico – etimológico. Petrópolis: Vozes, 1997, 2 vols.

EURÍPEDES. As bacantes. Disponível em: http://filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/as_bacantes.pdf

(Acessado em 11 de novembro de 2014)

FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO, Carmen. As 100 melhores histórias da mitologia: deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-roman. Porto Alegre: L&PM, 2007

PILIPPOSIAN, Andrea Carina. Mito e identidade em “Las menades” de Julio Cortazár. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Mestrado/Letras/Artigo_Andrea_Carina.pdf

(Acessado em 10 de novembro de 2014)

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