A Reencarnação da Arte Egípcia: o Egito no Contemporâneo

A era dos faraós é tão fascinante que inspira artistas e arquitetos até os dias de hoje, milênios depois de seu surgimento. O Egito Antigo, que pôs fim a Idade Neolítica, apresentava-se como uma sociedade organizada e cheia de peculiaridades que refletem em sua arte. Venho com o propósito de estabelecer uma proximidade entre a arte contemporânea e a egípcia, mostrando as heranças que nos foram deixadas, exemplificando com artistas do mundo atual, como a artista estadunidense Katy Perry no clipe Dark Horse, dirigido por Mathew Cullen.

O estranhamento do olhar veio logo no início dos achados da arqueologia egípcia, a estética das obras não agradava muito. Já nesse ponto muito se assemelha a arte contemporânea que causou e ainda causa, infelizmente, a mesma reação de desaprovação dos espectadores que não têm uma visão treinada. Muitas vezes, é preciso se informar, para então se encantar,pois o olhar do observador esta impregnado de cultura, que nem sempre é a mesma da do artista.

A ilustre cultura egípcia muitas vezes tem um caráter desgastado, exaustivos clichês são usados na publicidade e no cinema a partir dessa temática. Quando se fala em múmias e pirâmides praticamente todas as pessoas buscam na cabeça aquelas imagens vistas em algum filme, revista de viagem ou livro escolar. Uma pessoa do século XXI tem a ideia de que a arte egípcia tem um catálogo restrito de imagens exóticas e ao mesmo tempo familiares. Para mergulhar nesse universo do desconhecido, cheio de formas diferentes das quais estamos acostumados a ver, é preciso ter um olhar sensível e entender que esse tipo de arte não foi feita para agradar a nós, seres humanos de hoje.

Arte egípcia

Para os artistas egípcios, fazer arte não era uma tarefa de puro prazer, o que não significa que eles não poderiam extrair muitas satisfações daquilo, mas o ato, em si, estava além de preocupações meramente estéticas, girava em torno de crenças religiosas. O pintor e o escultor permaneciam como anônimos; sua personalidade não era levada em consideração, o foco era o padrão estereotipado da norma dos 18 quadrados, a frontalidade e a lateralidade imbricadas na figura humana, a juventude eterna sem traços individuais dos faraós e a precisão do trabalho. O retratado era muito mais importante que o artista. Essa ideia de que o artista plástico exerce apenas um trabalho mecânico, manual, perdura até a Idade Média, assim, as obras levavam os nomes das pessoas que representavam e não de quem as produziu.

O Faraó, considerado o chefe da religião e também da administração, era a figura máxima no mundo dos humanos, uma celebridade, desse modo, merecia um tratamento especial até em seu sepultamento. A tumba onde ficava seu corpo devidamente mumificado (já que eles acreditavam que o ka, espírito, precisava de um corpo para residir) era uma grande estrutura de pedra, mais conhecida como pirâmide. A união das arestas desta em um único vértice simbolizava justamente a elevação ao mundo dos deuses após a morte. A ideia da verticalidade remetendo à proximidade com deus/deuses depois foi retomada nas imensas catedrais góticas. E até hoje é utilizada, não mais apenas como símbolo religioso, mas como demonstração de poder, muitos edifícios contem formas pontiagudas que lembram essas verdadeiras obras primas, como: a Pirâmide de Vidro, de I. M. Pei, Louvre, concluída em 1989 e o Canary Wharf Tower, Londres, 1989.

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Obelisco egípcio retirado do templo de Luxor, feito há cerca de 3 300 anos atrás, Praça da Concórdia, França.  obelisco

Obelisco egípcio retirado do templo de Luxor, feito há cerca de 3 300 anos atrás, Praça da Concórdia, França.

noção de proporção Pirâmides de Gizé: Quéops, Quéfren e Miquerinos. A mais alta de Gizé, por exemplo, continha cerca de 2.300.000 blocos de calcário cada um com aproximadamente 2,5 toneladas e é considerada a maior arquitetura de pedra do mundo.

Nessa época não havia ainda uma separação entre magia (religião) e arte, por tanto, todas as produções artísticas (desenho, pintura e escultura) materializavam a ligação entre os humanos e os deuses. Desse modo, basicamente a arte egípcia se baseava na crença da vida após a morte e todos os seus setores ilustram isso. O conhecimento que temos dessa civilização veio a partir de túmulos (e não é por acaso, foram feitos para a eternidade) e fragmentos de obras que sobraram, então, certamente existiram produções artísticas com outras temáticas, uma arte mais popular, mas essa não sobreviveu para nos contar histórias.

O Egito no Contemporâneo

Depois dos filmes Cleópatra, de 1963, com direção de Rouben Mamoulian e Joseph L. Mankiewicz e A Múmia, de 1999, escrito e dirigido por Stephen Sommers, em 2013, Mathew Cullen retoma a temática do Egito com cores vivas, mixando ainda mais elementos egípcios e contemporâneos, dirigindo o clipe Dark Horse da artista Katy Perry.

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      A produção audiovisual traz uma harmoniosa composição de elementos da pintura, escultura e arquitetura (o templo aparece incompleto, uma apropriação das ruínas, talvez como forma de preservação da cultura). Já no começo a artista é mostrada em um barco viking e com uma roupa grega, sendo que todo o resto do cenário remete ao Egito. Uma “homenagem” a Cleópatra foi feita várias vezes no decorrer do vídeo e essa é uma delas. A rainha é descendente de uma linha macedônia – grega, sua cultura mistura elementos egípcios e helênicos, sendo assim o diretor mostram logo no início que tanto a história como a arte é feita de elementos passados e presentes; mesmo que a nostalgia não seja cultivada na arte funerária egípcia. A letra sobre Afrodite também reforça essa ideia.

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Apesar de como é mostrado no clipe os templos não eram espaços para pessoas e logo no seu estilo isso já era percebido. A arquitetura a base de pedra pedia a presença de enormes e grossas colunas muito juntas para aguentar o peso e também o fato de não ser pensada em proporções humanas, causa um sentimento de esmagamento pela enorme massa. Na produção de Cullen, Perry aparece como um mix de faraó e deusa (por isso aparece no templo) e realmente era assim que os egípcios viam essas pessoas de poder. Enquanto os servos eram retratados exercendo suas tarefas de maneira mais articulada, o faraó era estático. Não precisava fazer nada para ser especial, ele em si já era. Até hoje eles são admirados:

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A pintura e a escultura estão intrínsecas na arquitetura, são pensadas não apenas como, mas principalmente, elementos de decoração. Os artistas enchiam quase todo o fundo das pinturas com inscrições (hieróglifos, escrita egípcia), um certo horror ao vazio era identificado. Tudo tinha um sentido místico e dava vida. A pintura, por sua vez, era obcecada pela figura humana, talvez um narcisismo, assim como nossa relação de obsessão com a nossa própria figura (selfies). Mas naquela época não era com a própria e sim com a de deuses e faraós.

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  As pinturas parecem verdadeiras histórias em quadrinhos narrando rituais.

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A câmara de sepultamento no túmulo de Pasehd trabalhador, Deir Medina Ocidental Tebas, c.1250 a.C. Pintura em gesso.

IMG_0146 Vista sobre o túmulo de Nofretari, uma rainha de Ramsés II, Vale das Rainhas, Western Tebas, c.1250 a.C. Pintura em gesso.

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A cor azul usada na maquiagem e em muitos elementos do clipe era muito sofisticada no Egito e vem da rocha metamórfica Lápis Lázuli. Vista como “cor da realeza” juntamente com o dourado excessivo foi encontrada em vários túmulos faraônicos. Apreciada desde cerca de 7000 a.C. os quadros contendo essa coloração eram os mais caros na Idade Média também em função da extração do pigmento a partir da pedra.

IMG_0135Pedaço de bloco de pigmento azul, assim chamado “azul egípcio”. Encontrado em Dier El-Medina. Novo Império, XIX-XX Dinastas, cerca de 1300-1100  a.C.. Alt. 1,9 cm x circ. 8,2 m x larg. 6cm; diâm. Original 19 cm. E 14538 C, Museu do Louvre.

Não tem como falar de arte egípcia sem falar de religião, já que sua principal função era aproximar os mundos, o clipe mostra a figura de muitas divindades (politeísmo) com corpos humanos e cabeças de animais, ou seja, como quimeras (também presentes nas figuras da mesopotâmia). pegar4As deusas mais presentes na produção são:

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Bastet (figura de um gato ou de uma mulher com cabeça de gato) é uma divindade solar  e deusa da fertilidade, além de protetora das mulheres. Várias estátuas dessa divindade estão espalhadas pelo mundo, como é o caso da estatueta de bronze no Museu Britânico. Vale lembrar que gatos eram considerados animais sagrados, por isso também eram mumificados, e era um crime maltratá-los ou roubá-los para vendê-los. Em uma determinada época acredita-se que a população de gatos era maior que a de pessoas no Egito.

                               gatoBritish museum.

Ísis (figura feminina com asas) por proteger a todos de forma igual sejam escravos ou nobres, pecadores ou santos, governantes ou governados, homens ou mulheres, essa divindade por muito tempo foi vista como a maior da essência materna e a esposa perfeita. Também foram várias as homenagens feitas para essa deusa.

IMG_0152 Fragmento do invólucro de múmia de Djed-Khonsuiu-Ef-Ankh. Terceiro período intermediário, XXII Dinastia, cerca de 945-715 a.C. Cartonagem (aglomerado de tecido estucado, pintado e dourado), alt 170 cm x larg. 40 cm x prof. 33 cm. N 2621, Museu do Louvre.

rihanna Tatuagem com a fígura de Ísis da cantora Rihanna.

Esta cena é uma representação do suicídio de Cleópatra (via víboras) nela aparecem: Anúbis (normalmente era representado com cabeça de chacal ou cachorro, sua principal função era encaminhar o defunto para a viagem ao submundo, onde seu coração seria pesado) Hórus (cabeça de águia), Bastet (cabeça de gato), Tot (cabeça de ave) e supostamente Tefnut (cabeça de leão).

katy-perry-dark-horse-3 Artistas contemporâneos também usam a temática da mistura de partes do corpo de animais e de humanos formando figuras de quimeras assim como os deuses egípcios: pegar2

     A pimeira imagem é a obra Big Mother, 2005 e a segunda é The Coup, 2012, ambas de Patricia Piccinini (artista australiana nascida em 1965).

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Os artistas Francesco Sambo e Zachary Rose trazem a  temáticas de quimeras contemporâneas a partir de séries fotográficas a base de  montagens.

Enfim, se no Egito Antigo a arte ficava restrita a uma parcela da população e também trancafiada em monumentos mortuários, agora está acessível para quem quiser e não quiser ver, pois se encontra até nas ruas, além de museus, galerias etc. Alguns locais podem até ter formas de pirâmides, mas o espaço é pensado de uma maneira diferente, pois predomina o espaço vazio, onde as pessoas podem e devem passar e apreciar, é feito para elas. Desse modo, assim como a cultura egípcia tem elementos da mesopotâmia, as heranças em forma de traços que lembram outros povos seguem de maneira crescente e acumulativa até a atualidade. A arte contemporânea é uma mistura de outras produções artísticas de períodos passados, porém com a sua identidade, a marca de inovação que cada artista traz, como se fosse uma reencarnação.


Referências Bibliográficas

MUSEU DO LOUVRE; MUSEU DE ARTE BRASILEIRA; FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO. A Arte Egípcia no Tempo dos Faraós: acervo do museu do Louvre. Brasil: Pancrom, 2001.

GROMBRICH, Ernest Hans. A História da Arte. Rio de Janeiro: Grupo Editorial Nacional, 2013.

JANSON, Horst Woldemar. História Geral da Arte: da pré história a Idade Média. Vol.3. Martins Fontes.

MALEK, Jaromir. Egyptian Art. Phaidon.

HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. Martins Fontes.

KEBS, Hermann. Arte Egipcio. Barcelona: Editorial Labor, 1932.

VALLEJO, Juan Jesús. Breve História do Antigo Egito. São Paulo: Madras, 2012.

SALLES, Catherine et al. Larousse das Civilizações Antigas: Vol.I – dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse, 2008.

STRICKLAND, Carol. Arte Comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

https://www.youtube.com/watch?v=0KSOMA3QBU0 acessado pela última vez em 20/11/2014

http://www.katyperry.com.br/2014/mathew-cullen-fala-sobre-as-referencias-egipcias-em-dark-horse/acessado pela última vez em 20/11/2014

http://www.francescosambo.com/ acessado pela última vez em 20/11/2014

http://www.dogster.com/bolz/photographer-zachary-rose-pets-people acessado pela última vez em 20/11/2014

http://www.patriciapiccinini.net/ acessado pela última vez em 20/11/2014


Universidade Federal do Rio de Janeiro – Escola de Belas Artes

Aluna de História da Arte: Jéssica Moraes

Professora Aline Couri, 1º período.

9 pensamentos sobre “A Reencarnação da Arte Egípcia: o Egito no Contemporâneo

  1. Realmente, é nítido como nos apropriamos de elementos do passado, dando-os nossos próprios significados. O clipe da Katy Perry e uma boa ilustração disso, pois além de remeter a cultura egípcia, também desloca outras matrizes simbólicas, como a estilização das roupas gregas e até mesmo as luzes “led” saindo dos olhos do monumento, fenômeno tecnológico comum em alegorias, principalmente a partir do advento da indústria cinematográfica datada do início século XX – como vimos a partir do texto do Walter Benjamin.

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  2. Muito legal a comparação do Egito antigo com a Arte contemporânea, o Egito sempre foi simbolo de destaque entre as celebridades e no clipe da Katy Perry podemos ver nitidamente, mostrando o Egito como aberto ao público e com cores vibrantes ao invés da utilização exacerbada de ouro. Ela como a nova Faraó, vejo como uma forma de poder da mulher na sociedade nos dias de hoje.

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  3. É engraçado e instigante pensar como nos baseamos na arte antiga para produzir e reformular alguns conceitos que, de certa forma, não são esquecidos pelos contemporâneos. Acredito que toda essa fascinação pelo Egito se dê pelo seu significado de poder, toda sua riqueza e toda influência gerada por essa arte. E como bem disse, a arte egípcia não foi feita para agradar as pessoas de hoje, porém com toda a sua perplexidade encantou e continua nos encantando, e o que me chama atenção é exatamente isso, como a arte egípcia é usada como inspiração para vários campos da arte, o que afirma cada vez mais a preciosidade dessa cultura. Belíssimo trabalho, parabéns :*

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  4. O passado como um todo sempre foi e será fonte infinita de inspiração e fetiche, principalmente para a arte pop. Quanto mais intrigante é um fenômeno – como Cleópatra e as pirâmides – mais vazão ele da para que se crie a partir dele. Seu trabalho me lembrou de “Meia noite em Paris”, do Woody Allen, que é justamente uma história sobre essa fantasia de viver um tempo que se julga mais glorioso e interessante que aquele em que se vive.
    Parabéns pelo trabalho!

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  5. Quanto a reprodução em filmes, clipes, ou produtos, me lembrei de Walter Benjamin em ‘A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica’, que consegue exemplificar bem a influência da midiática nas pessoas e o que isso gera pra quem produz e pra quem compra/assiste. Foi interessante ler esse levantamento de dados mostrando as semelhanças egípcias antigas com elementos contemporâneos que passam despercebidos aos nossos olhos.

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  6. Excelente trabalho. Importante para repensarmos sobre essa apropriação da estética egípcia na arte contemporânea. Diversos artísticas utilizam-na como alegoria para expor seus trabalhos. Citando os exemplos no cenário pop internacional, ao qual pertence Katy Perry, temos as cantoras Beyoncé e Rihanna que já performaram músicas com inspiração na estética egípcia em seus shows. No Brasil temos, quase que anualmente, no mínimo uma escola de samba que durante o carnaval faz exaltação a essa cultura antiga, seja em alegorias, alas ou até mesmo como pilar central do enredo. Parabéns.

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  7. É realmente interessante ver como, apesar de alguns exageros (principalmente quanto a utilização das cores) e algumas fugas, o autor do clipe se mantém, de certa forma, fidedigno a cultura egípcia. É curiosa essa mistura entre a Cleópatra e o faraó que, como já comentado aqui, me lembra também talvez como uma forma de poder da mulher na sociedade atual, talvez como uma busca por igualdade.
    De qualquer forma, é ótimo saber que as culturas passadas continuam influenciando as atuais – quando de maneira positiva. A beleza dos elementos muito destacados no Egito, como o ouro ou a cor azul por exemplo, é claramente observada como influência na contemporaneidade quando buscando explorar essa época.
    Parabéns pelo trabalho!

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